Nota de falecimento   

 


 

 
"In memoriam" distribuido por ocasião da Missa de Sétimo Dia, celebrada na Igreja de São Miguel Arcanjo e Santo Expedito, Brasília - DF, no dia 26 Jun 2009."

NOCCHI

O sábado estava muito frio, e eu procurando me recuperar de um fortíssimo resfriado pós-feriadão. Fiquei em casa assistindo à emocionante final do “Soletrando”, um duelo polarizado entre o viçosense Pedro Henrique (será que o Fontenele acompanhava o conterrâneo?) e a pernambucana Larissa. Minha torcida era pela menina, aluna brilhante do CMR, mas lamentei quando o menino foi derrotado pela palavra “palimpsesto”, técnica de reaproveitamento de pergaminho, ou seja, uma coisa que não se usa desde que inventaram o papel. Antes só vi esse palavrão nos livros ginasianos de Geografia e História de Borges Hermida ou Haroldo de Azevedo. Sinceramente quem sugeriu uma palavra dessas é um sádico de marca maior.

Terminado o programa fui dar uma garimpada na internet, e aí a terrível notícia: o Nocchi falecera naquela manhã. Mais tarde outras notícias sobre velório e sepultamento. Chegava ao fim uma rápida tentativa de tratamento de insidiosa moléstia que levou nosso amigo.

Oriundo do meio civil – é um dos homenageados no PPS “Os Onze”, no site da nossa Turma, só vim a conhecê-lo no convívio da Intendência, no 2º Ano. Tinha uma incrível facilidade para fazer e conservar amigos. Intercalava momentos de sagacidade com outros em que dava uma falsa impressão de desatenção total, mas era nessas horas que a inteligência funcionava a mil, com soluções certas e inesperadas. Irreverente, riso espontâneo parecia não dar bola para a vida. Parecia, somente: era responsável quando necessário, dedicado ao que se propunha fazer, e, sobretudo leal para com os companheiros.

Quando não tinha desafios, criava-os, para mostrar que venceria. Ficou famosa sua decisão de tirar Dez nas provas do “Velho Mé”, um professor à antiga, que sempre tirava uma gaivota de quem não respondesse “ipsis litteris” o que estava no livro de sua autoria (Cel Benedicto de Andrade). Solução; em poucos dias decorou todo o livro de Contabilidade Pública, e divertia-se caminhando pela Ala, fazendo as citações das vírgulas, travessões, e até dos números das páginas, para desespero dos colegas que não tinham neurônios tão potentes para a memorização. Ao contrário do que pudesse parecer, não era um decoreba daqueles que nada assimilam. Sabia muito bem interpretar o que lia e obter ensinamentos mais racionais.

Outro desafio famoso, ser o primeiro a chegar ao bar do Juca, para que um instrutor nosso, frequentador de carteirinha do local, já o encontrasse bebendo todas, para mostrar que sua “unidade de carburante” era igual ou maior que a do frangalhal.

Muita gente vendia de tudo na Ala. Certa vez dispôs-se a comercializar meias e agasalhos pequenos: num instante ganhou a freguesia de outros notáveis e conhecidos regatões, por pouco não os levando à falência e ao desespero, tanto que imploraram para que abandonasse o comércio.

No final dos anos sessenta os tenentes que serviam no Curso de Intendência da AMAN lembraram-no para ocupar uma vaga de instrutor. A impressão que ficou é que nossos antigos instrutores respeitavam-no, mas temiam pela inteligência cáustica e brilhante, daí descartarem seu nome.

Mas a AMAN contou com trabalho competente dele, em 77/78, no Curso de Intendência, ao mesmo tempo em que fazia uma faculdade civil em Lorena e se preparava para o concurso da ECEME. Dizem que era o terror de uns tenentes meio largados – nenhum deles atingiu o generalato – quando examinava com esmero os planos de sessão e as propostas de provas. Se não estivessem bons, voltavam com a observação: “faça um gabarito e não um gambá-rito!”. Ao deixar a função legou ao substituto o melhor planejamento anual que o C Int teve, em todos os tempos. Pena que intervenções não muito bem explicadas, naquele período que intercala o final de um ano letivo e o início de outro, alteraram a essência do planejamento, e os sucessores tiveram de recomeçar da marca zero.

Reencontrei o Nocchi em 93, designado meu “padrinho” na ECEME, uma figura destinada a atenuar o choque de chegada à Praia Vermelha e o retorno à condição de aluno. Basicamente é uma passagem de dicas e macetes que vão desde o melhor horário para estender roupa na corda, itinerários dos ônibus, comércio nas imediações, melhor horário e itinerário para corrida, informações sobre provas escolares, etc. Padrinhos mais afoitos dão uma olhada no apartamento do afilhado, antes da entrega das chaves, para ver se há alguma coisa a providenciar, marcam elevador, para subir a mudança, reservam escola e transporte para as crianças, e por aí afora.

O ápice do apadrinhamento está na entrega de um papelório enorme composto de fichas de estudo, das indefectíveis Pubs, manuais, mapas, muitos calcos e esboços sobre a matéria do primeiro ano. Há quem leve essa parafernália em um carrinho de mercado, abarrotado com caixas de arquivo morto ou pastas A-Z com orelhas, calcos já passados para o plástico, gabaritos para bolotear núcleos de defesa, áreas de apoio logístico, etc., tudo acompanhado de solenes e extensas explicações sobre a utilização de cada papel.

Ele, como sempre, foi inovador. Deu-me as boas vindas e foi logo avisando que não tinha nada para me passar, jogou tudo fora porque não via utilidade em guardar aquelas coisas de um ano para outro. Em compensação eu teria mais tempo para decidir o que estudar. Seu raciocínio tinha uma lógica: com tantos instrutores brilhantes a Escola não iria ficar repetindo exercícios do ano anterior. Quanto aos fundamentos, a cada ano até o “Santana( )” sofria pequenas alterações, que invalidavam as edições anteriores.

Se eu tivesse alguma dúvida, deveria perguntar a ele antes que fosse para o Círculo Militar, ritual que cumpria ao final da tarde, para saborear um “paulipetro”, drinque de vodca com Fanta laranja. Lá pelas nove ou dez da noite retornava, geralmente junto a – entenda-se: escorado - um ou dois solícitos amigos, e ia dormir. No dia seguinte estava inteirão e perfeitamente lúcido. Dentre as peripécias em aula ficou famoso por haver gabaritado uma prova de apoio administrativo, a que ele denominava “prova da costureira”, porque andava com o curvímetro pela carta toda (que lá é uma coleção de folhas coladas, coisa que pode chegar a 3m x 3m), como se fosse uma carretilha de alfaiate. Dizem que dispensou a mesa, jogou a carta no chão e saiu passeando por cima daquele “tapete” de papel, cantarolando uma musiquinha para animar. Perguntei se era verdade essa modelagem no chão e ele respondeu com a mais sonora gargalhada desse mundo, e uma frase: “só leve a sério as coisas sérias!”.

Terminado o curso foi para Brasília, estagiar em algum lugar da área da SEF. Um ano mais tarde também fui para a Capital, para o CMP, mas já o encontrei fora do Exército. Inscreveu-se num concurso público, daqueles com dois mil candidatos por vaga, e foi aprovado com distinção. Já tinha tempo de serviço de sobra, pediu transferência para a Reserva e passou a trabalhar na área de auditoria, em outro Ministério.

Embora fora da Força, nunca deixou de, à sua maneira, prestigiar os amigos, mantendo com todos ótimos relacionamentos. Mas tornou-se um tanto arredio, não dando retorno aos e-mails, mas isso não era novidade para quem o conhecia. Talvez não suportasse a enxurrada de asneiras que soltamos – e recebemos - a cada momento na web.

Pela informação que recebemos sua Missa de Sétimo Dia teve maciço comparecimento de amigos, com destaque para os companheiros do trabalho atual, no Ministério do Trabalho e Emprego, prova de que continuou até o final o mesmo Nocchi simples, aglutinador de amizades, leal, brincalhão e sagaz de todas as épocas.

Quando Barack Obama pronunciou a frase que se tornou célebre, “Yes, we can”, estava dizendo menos do que o Nochi; para quem conviveu com ele, o “paisano de Macaé” diria “Sim, nós faremos – e melhor!”. Nunca encontrei alguém que tivesse servido com ele e lhe fizesse qualquer restrição ao companheirismo e à capacidade de trabalho.

É triste, mas necessário, um testemunho sobre o que todos nós sentimos pela perda desse colega.

Esteja na Paz do Criador, grande amigo!

À esposa Marinete, aos filhos e demais parentes nossas sentidas condolências.


(Texto publicado no “O Intendente 1962” de 30 Jun 09, de autoria do Tuducax Int Amaury de Paula Teixeira).
 

 


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